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Embora os efeitos do amianto (asbesto) sobre a saúde humana sejam conhecidos desde a Antiguidade, as evidências clínicas e epidemiológicas remontam ao início do século XX1. As diferentes fibras de amianto, tanto do grupo dos anfibólios (amosita, crocidolita, antofilita, actinolita e tremolita) quanto das serpentinas (crisotila), estão implicadas na ocorrência de câncer e outras doenças em humanos. A crisotila é a mais importante comercialmente, respondendo por mais de 90% da produção mundial atual2. Os efeitos da exposição ao amianto são variados: asbestose, uma fibrose pulmonar progressiva; placas pleurais; câncer de pulmão; e mesoteliomas de pleura e peritônio3,4,5. O risco aumenta linearmente com a exposição cumulativa e com o tempo desde a primeira exposição3,4. O mesotelioma de pleura é uma neoplasia maligna especificamente relacionada com a exposição ao asbesto, cujo risco é dependente do tempo de latência e do tipo de fibra, sendo três vezes maior nos expostos aos anfibólios quando comparado aos expostos à crisotila2-6. Exposições ambientais não-ocupacionais ao amianto também têm sido associadas ao risco de mesotelioma7. O câncer de laringe e alguns tumores gastrointestinais também foram relacionados ao amianto em alguns estudos8.

A consulta na base bibliográfica Medline permite constatar a grande quantidade de estudos epidemiológicos com enfoque nos efeitos do amianto sobre a saúde realizados nos últimos cinco anos em diferentes regiões do mundo. A Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC), da Organização Mundial da Saúde, classifica o amianto como definitivamente carcinogênico para os humanos (Grupo 1), com base na consistência de resultados gerados por pesquisas epidemiológicas que se acumularam desde os clássicos estudos de Doll9 que relacionou o câncer de pulmão à exposição ao asbesto e Wagner et al10. que identificaram a ocorrência de mesoteliomas da pleura em mineiros e trabalhadores na indústria de processamento de asbesto; e ainda nos resultados de experimentos conduzidos em modelos animais, que mostraram de forma inequívoca a carcinogenicidade dos diferentes tipos de fibra de amianto8.

Apesar destas evidências, mantém-se no Brasil um vivo debate sobre as constatações dos efeitos do amianto sobre a saúde. A polêmica é alimentada por claros interesses econômicos11,12. O Ministério da Saúde mantém-se alheio ao assunto, embora o tema tenha implicações profundas na saúde da população. A atual discussão sobre o amianto é, em muitos aspectos, similar à ocorrida em alguns países no período anterior ao banimento. O uso do asbesto está praticamente encerrado nos Estados Unidos e outras nações industrializadas desenvolvidas2. Exemplo próximo foi o ocorrido na França, em 1997, que proibiu a importação, fabricação e comercialização de produtos derivados do amianto após a divulgação de um relatório pelo Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica (INSERM) sobre os efeitos nocivos do amianto5. No Brasil, o debate galvaniza-se em torno dos resultados de um estudo epidemiológico realizado entre trabalhadores da única mineração de amianto atualmente em operação no país. A pesquisa não teria identificado nestes trabalhadores diferenças de mortalidade em relação à população de referência e teria detectado que a prevalência de asbestose foi decrescente ao longo do tempo de observação13. Com base nestes resultados, a argumentação dos defensores brasileiros do uso do amianto fixa-se agora nos riscos distintos atribuídos aos vários tipos de fibra de amianto, sugerindo-se a liberação do uso da crisotila devido ao seu suposto baixo potencial de provocar danos à saúde humana. Ressalte-se, entretanto, que não há qualquer referência nas publicações da IARC que isente a fibra crisotila de efeitos sobre a saúde.

A identificação e relatos de casos de asbestose, de placas pleurais, câncer de pulmão e de mesoteliomas no Brasil têm sido constante desde o relato de seis casos de asbestose em 1956 em trabalhadores de mineração em Minas Gerais. Porém, estudos com número de observações mais expressivo são raros. Até onde foi possível obter informações das bases bibliográficas existentes e de acordo com recentes revisões feitas sobre o tema1,5, apenas três estudos epidemiológicos populacionais buscaram explorar diretamente a associação de determinadas doenças com a exposição ao asbesto5,13,15.

Em 1998, foram publicados os resultados de um estudo caso-controle de base hospitalar sobre os efeitos da ocupação na ocorrência de câncer de pulmão na Região Metropolitana de São Paulo15. Foi construída uma matriz de exposição ocupacional com o objetivo de investigar o risco da doença entre os expostos a seis agentes reconhecidos como carcinogênicos para o pulmão, entre os quais o amianto. Não foi encontrada associação entre amianto e câncer de pulmão. O principal problema metodológico deste estudo foi a provável ocorrência de erro de classificação não diferencial, uma situação que afeta particularmente os estudos caso-controle e na qual o método de avaliação da exposição mostra-se inadequado e insuficiente para separar os indivíduos expostos dos não expostos, impedindo assim a identificação de possíveis associações entre determinado fator de risco e uma doença.

O segundo estudo trata-se de uma coorte histórica realizada em duas minerações de asbesto no Brasil, pertencentes à mesma empresa, em Poções, Estado da Bahia, cuja produção já foi encerrada, e em Minaçu, Estado de Goiás, ainda em atividade. O estudo não teria identificado riscos para a saúde entre os mineiros. Os resultados não foram ainda publicados em periódico científico, assim os comentários aqui expressos limitam-se aos dados descritos no relatório final entregue à Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (FAPESP) em dezembro de 200013. O principal aspecto a ser destacado dos resultados diz respeito à condução da coorte, que perdeu do seguimento mais de 50% dos trabalhadores. Este nível de perdas pode ter induzido sérias distorções no estudo, comprometendo sua validade. Por exemplo, os trabalhadores que foram perdidos podem constituir-se num segmento da força de trabalho nas minerações que experimentou as exposições mais intensas. Por outro lado, se o rastreamento foi particularmente ineficaz para os trabalhadores que foram demitidos ou aposentados antes da idade habitual de aposentadoria, e se uma doença atribuível ao asbesto foi a razão suspeita da aposentadoria precoce ou demissão, então uma estimativa inaceitável de mensuração das taxas da condição vital poderia resultar em um risco subestimado dos efeitos que se estuda. No seu relatório, os autores não comentam estes aspectos. Também é importante considerar, de acordo com o que foi possível concluir da leitura do relatório final à FAPESP, que a análise epidemiológica está ainda incipiente, faltando, por exemplo, informações sobre procedimentos de padronização de populações. Os autores fazem referência à aplicação da regressão logística aos dados, porém os resultados não foram apresentados no relatório. É possível que a continuidade do estudo com o aumento da proporção de recrutamento de participantes da coorte permita chegar a resultados mais consistentes.

Finalmente, há no Brasil o estudo transversal conduzido por Freitas5 entre ex-trabalhadores de uma empresa de cimento-amianto no município de Osasco, Estado de São Paulo, que permaneceu em operação de 1941 a 1992. O objetivo do estudo foi rastrear a doença pleural nestes trabalhadores. Foi encontrada uma prevalência de cerca de 30% de espessamento pleural na população estudada, cujo risco mostrou uma relação linear com o tempo de latência. O autor salientou que a presença de placa pleural não pode ser assumida apenas como um marcador de exposição ao asbesto, mas como uma doença profissional que conduz a conseqüências clínicas e funcionais distintas, que interferem na qualidade de vida dos portadores. O estudo, exemplarmente conduzido e analisado, sofre entretanto de uma limitação principal, um possível viés de seleção, pois a população examinada constituiu-se de trabalhadores que espontâneamente procuraram o serviço de pneumologia ocupacional da Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (FUNDACENTRO).

Uma maioria irrefutável de estudos epidemiológicos e experimentais apontaram os múltiplos danos para a saúde decorrentes da exposição ao asbesto8. Quando acontece de uma investigação científica revelar resultados antagônicos aos que seriam esperados em consonância com o conhecimento existente, é mais adequado considerar que a origem provável destes achados se encontra nas insuficiências do desenho e da análise17. É, portanto, lastimável que a discussão do que fazer com relação ao amianto no Brasil venha assumindo por parte de alguns este caráter simplificador e com argumentos fundamentados nos resultados de um único estudo.

Mendes1, em recente revisão sobre o amianto, menciona os seus inúmeros usos na vida moderna. Isto multiplica o número dos indivíduos expostos nas diferentes fases de manufatura e uso de produtos oriundos deste agente. Deve-se ressaltar que estudos epidemiológicos estabeleceram que o risco de câncer na atividade de mineração é inferior ao observado entre os expostos nas indústrias de processamento do amianto2.

Sem dúvida, haverá implicações econômicas com o banimento de uma matéria prima de uso milenar e com tão ampla aplicação, mas o que representa tudo isso se formos incapazes de tomar decisões que preservem a vida humana com qualidade?

A história mostra que durante o século passado a indústria de amianto, em colaboração com alguns líderes acadêmicos de medicina ocupacional, buscou desqualificar as evidências que gradativamente foram sendo demonstradas contra o uso do asbesto. Resultado de pressões públicas e das proibições legais impostas, a exploração e utilização do asbesto foram descontinuadas em muitos países desenvolvidos. Desde então, os países subdesenvolvidos se viram submetidos a uma intensa e agressiva campanha desencadeada pelos produtores de crisotila, particularmente de origem canadense, que buscam estabelecer que o danos causados pelo uso desta fibra seriam baixos. Neste cenário, procuram recuperar nos países em desenvolvimento, que atualmente formam o seu único e último mercado potencial, a estratégia que vinha sendo utilizada no passado nos países desenvolvidos, para a legitimação de seus argumentos19.

No final do prefácio do relatório do estudo de Poções/Minaçu apresentado à FAPESP, assinado pela Professora Margaret Becklake, da Universidade McGill do Canadá, há a sugestão de que os resultados do estudo poderiam vir a contribuir na decisão internacional do uso da crisotila dentro do contexto da saúde pública. Implícito neste argumento a sugestão da liberação do uso do amianto crisotila desde que sob condições controladas e seguras. Entretanto, para substâncias cancerígenas, as agências internacionais não mais aceitam o conceito de limite de tolerância como sinônimo de exposição segura para os seres humanos. O objetivo é, desde o momento em que uma substância seja considerada cancerígena como resultado de estudos experimentais e epidemiológicos, atingir o risco zero a partir da exposição zero20. Assim, é bastante perigoso e insustentável do ponto de vista científico afirmar que a crisotila possa ser usada sem riscos para a saúde dos trabalhadores e de seus familiares.

Legislações acerca do banimento do amianto foram aprovadas nos Estados de Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo. Este movimento deverá confluir para uma legislação federal para impedir o uso comercial do amianto no país. A indústria, sem dúvida, saberá encontrar as alternativas para sua substituição e muitas destas substâncias já se encontram em uso em outros países. Os epidemiologistas deverão continuar exercendo o seu papel de vigilância e buscar identificar novos riscos à saúde que possam advir do uso destas novas substâncias. E, se deletérias, deverão também ser substituídas. Para os profissionais da saúde permanecerá ainda uma outra tarefa de vigilância, pois o longo período de latência dos diversos agravos à saúde relacionados ao asbesto permite supor que após o banimento muitos casos de doenças deverão emergir. E este tempo de latência, considerando-se o incremento do uso do asbesto na indústria no Brasil, começa a se cumprir agora1, 5. Os custos decorrentes do tratamento destes trabalhadores, como sempre, ficarão a cargo do estado.

 

REFERÊNCIAS

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Autor: *V. WÜNSCH FILHO, H. NEVES, J.E. MONCAU – Departamento de Epidemiologia, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, SP.

Publicado em 29/08/2014 -

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