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Documento, assinado pela presidente da Anamatra, marcou encerramento de seminário sobre o tema, na USP

 

 

Suspender a votação do PLV 17/2019, relativo à conversão da MP 881/2019, e ampliar o debate a respeito do tema, por meio de audiências públicas e diálogos interinstitucionais que busquem construir a efetivação das liberdades seguindo os preceitos e valores constitucionais. Esse é o pleito da instituições signatárias da “Carta de São Paulo”, documento que marcou o encerramento do Seminário “Estado social e liberdade econômica”, nessa segunda (12/8), na Faculdade de Direito da USP.

A presidente da  Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), Noemia Porto, que assinou o documento, participou do evento. “A  Carta foi construída em razão dos debates do Seminário, que reuniu diversas entidades, professores, juristas e sindicalistas”, explica a juíza. A magistrada participou da mesa de honra, na abertura do Seminário, e foi uma das debatedoras de mesa que discutiu a MP 881/2019 e o Direito do Trabalho. A medida inseriu novas disposições e alterou dispositivos da legislação trabalhista, configurando-se como uma nova reforma, pouco tempo depois da entrada em vigor da Lei nº 13.467/2017.

 

Confira abaixo a Carta de São Paulo:

Ao tempo em que se desdobra uma enorme campanha midiática em torno da aprovação da MP n. 881/2019, ora vertida como PLV 17/2019, sob o alarde de que promoverá, enfim, a liberdade econômica essencial para tirar o país da crise, é curial tornar públicas as seguintes objeções de forma e de fundo:

1. A exemplo do que se passou com a “reforma trabalhista” (Lei 13.467/2017), a MP n. 881/2019 aposta em estratégias que iludem as suas maiores finalidades e dificultam a sua compreensão. A população em geral e muitos que a defendem desconhecem, neste momento, o que exatamente está dito na MP. E, de dezenove artigos originalmente encaminhados ao Congresso Nacional, o PLV em discussão termina por introduzir ou alterar mais de cinquenta dispositivos legais.

2. Nada do que existe no texto da MP 881 está abarcado pela hipótese do artigo 62 da Constituição Federal, a justificar a regulação da matéria por meio de desse instrumento jurídico. Aliás, é mais razoável sustentar a inviabilidade jurídica de uma medida provisória com esses conteúdos, conforme previsão expressa do parágrafo 1o do mesmo artigo, do que fundamentar a sua adoção.

3. As alterações propostas pela MP 881 constituem alteração profunda na ordem jurídica como um todo, perpassando vários ramos do Direito e pretendendo, inclusive, modificar a própria lógica estrutural constitucional. Em todas as searas há entraves sensíveis a serem redimidos, consoante ponderações de especialistas das mais diversas áreas. De outra parte, os termos da proposta, no que sacrificam direitos fundamentais, estão distantes de gerar os efeitos pretendidos de melhora da economia. O que se antevê, caso a MP em questão seja convertida em lei com os termos atuais, é um novo ciclo de enormes complicações jurídicas, com profunda insegurança para os cidadãos em geral e mesmo para quem vislumbre dela se beneficiar. O viés de redução de direitos sociais, outrossim, é claramente anticíclico e recessivo.

4. Ainda que se projete uma liberdade de atuação empresarial sem qualquer interferência do Estado, ao se ter que assumir respeito à Constituição, acaba-se fragilizando o próprio objetivo do projeto. Com efeito, diz expressamente o artigo 1o que a proteção “à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica”, objeto central da MP, está submetida ao disposto no inciso IV do art. 1o, no parágrafo único do art. 170 e no “caput” do art. 174 da Constituição Federal. A referência, porém, revela bem os ímpetos do texto, uma vez que não cabe ao legislador infraconstitucional eleger quais artigos da Constituição serão respeitados: a submissão da lei à Constituição é plena. Assim, p. ex., não se concebe que o texto em debate não se subordine ao valor social do trabalho (art. 1o. IV) e à função social da propriedade, p. ex. (art. 5o, XXIII).

5. Com efeito, depois de tantos debates e experiências históricas firmou-se o pacto constitucional de 1988, com a qual o Estado Democrático de Direito constrói-se como Estado Social, com limites claros e inequívocos aos interesses econômicos individuais, sendo certo que dentre os preceitos e valores limitadores estão os direitos trabalhistas assegurados no Capítulo dos Direitos e das Garantias Fundamentais, integrados ao conceito de cláusula pétrea ou protegidos pelo princípio da vedação do retrocesso social.

6. A MP n. 881 tenciona nitidamente desconsiderar a autoridade constitucional, reportando alguns poucos artigos constitucionais e olvidando outros tantos, como se fosse ela – e não a própria Constituição – a determinadora dos sentidos de todas as demais leis do país. Esse ímpeto de usurpação hermenêutica revela-se bem no art. 1o,§ 1o, da proposta, pelo qual “[o] disposto nesta Lei será observado na aplicação e na interpretação de Direito Civil, Empresarial, Econômico, Urbanístico, e do Trabalho, nas relações jurídicas que se encontrem no seu âmbito de aplicação, e na ordenação pública, inclusive sobre o exercício das profissões, comércio, juntas comerciais, registros públicos, trânsito e transporte e proteção ao meio ambiente”. Para mais, faz sobrepor o interesse privado, de natureza puramente econômica, ao interesse público, ao dispor que “[i]nterpretam-se em favor da liberdade econômica, da boa-fé e do respeito aos contratos, aos investimentos e à propriedade todas as normas de ordenação pública sobre atividades econômicas privadas.”

7. No campo juslaboral, reproduzindo a cantilena de que o progresso econômico do país depende da redução dos custos dos direitos trabalhistas, propõe-se, entre outras “inovações”, a virtualização da Carteira de Trabalho e Previdência Social, com controladas exceções, em um país com dezenas de milhões de brasileiros sem acesso à internet; restrições ao repouso semanal remunerado e em sua coincidência com o domingo (um a cada sete semanas, retornando à regra que vigorava em 1966); a autorização irrestrita para o trabalho aos domingos e feriados, com o requisito do pagamento de remuneração em dobro, em claro aceno à monetização da saúde humana; a autorização para, mediante acordo individual escrito, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, formalizar-se o registro de ponto “por exceção” à jornada regular de trabalho, expandindo os horizontes já dilatados de sonegação de horas extraordinárias; obrigatoriedade de anotação do horário de trabalho apenas para os estabelecimentos com mais de 20 trabalhadores, aumentando imensamente as hipóteses de dispensa do controle formal de jornada; as objeções à participação dos sindicatos na atividade de Inspeção do Trabalho; e a incompreensível figura dos contratos de trabalho “híbridos”, com remuneração mensal acima de 30 (trinta) salários mínimos, regidas ao mesmo tempo pelo direito civil e pelo art. 7o da Constituição da República.

8. Nos arts. 3o incisos IV, XIV, XVI, XVII (§ 2o, III e § 3o), 9o, 19 e 28 da MP 881 é possível identificar também graves ataques à Auditoria Fiscal do Trabalho. As alterações propostas nos arts. 161, 163, 635 e 637 da CLT, entre outras, são violadoras das garantias do Sistema Federal de Inspeção do Trabalho que estão constitucional e internacionalmente garantidas. Violam o art. 21, XXIV, da Constituição, que atribui à União competência para “organizar, manter e executar a inspeção do trabalho”, bem como os comandos da Convenção n. 81 da OIT, ratificada pelo Brasil, o que pode trazer enorme prejuízos para a classe trabalhadora.

9. O Direito do Trabalho, cumpre recordar, rege-se pelos princípios da progressividade e do não retrocesso social. O dirigismo contratual e a função social do contrato estão adquiridas, no âmbito do Direito Civil – e especialmente em searas como as do Direito Agrário e do Direito do Consumidor –, há pelo menos um século. O intervencionismo estatal para assegurar o bem comum em contextos de crises de abastecimento e afins é encontradiço em todo o mundo civilizado. Não se harmonizam com a Constituição da República quaisquer ímpetos legislativos que tendam à agressão de direitos fundamentais, à irresponsabilidade do Estado e à desproteção deliberada dos mais vulneráveis.

10. Conclamamos, por isso, o Congresso Nacional a suspender a votação do PLV 17/2019 e a abrir o necessário e amplo debate a seu respeito, por meio de audiências públicas e diálogos interinstitucionais que busquem construir a efetivação das liberdades seguindo os preceitos e valores constitucionais, sem se lançar a experimentos que flertem com as premissas do anarcocapitalismo.

São Paulo, 12 de agosto de 2019.

JORGE LUIZ SOUTO MAIOR (USP)
GUILHERME GUIMARÃES FELICIANO (USP)
MARILANE OLIVEIRA TEIXEIRA (UNICAMP)
CELSO CAMPILONGO (USP)
NOEMIA GARCIA PORTO (ANAMATRA)
GILBERTO BERCOVICI (USP)
ESTELA WAKSBERG GUERRINI (Defensora Pública)
CAROLINA ZANCANER ZOCKUN (PUC/SP)
ENEAS DE OLIVEIRA MATOS (USP)
ROSA MARIA CAMPOS JORGE (SINAIT)”

Fonte: Anamatra | Foto: Ass. Anamatra | www.anamatra.org.br

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