HIV, tuberculose, ebola, dengue, zika e, agora possivelmente, o coronavírus são exemplos disso. A literatura é extensa sobre o tema e o chama de biopolítica, patologias do poder, sofrimento social ou, como recentemente escreveu Debora Diniz, a necropolítica das epidemias. Em todos essas perspectivas, chama-se a atenção para como alguns corpos são escolhidos para vencer a batalha da sobrevivência, enquanto outros são jogados à própria sorte. Como para algumas pessoas a vida é permitida e a outras, não? Essas são questões tanto de saúde pública quanto de política econômica – e só podem ser pensadas juntas.

Precisamos urgentemente tratar a pandemia do coronavírus como uma questão relacionada à opressão social. O vírus escolhe, sim, classe, raça e gênero.

Conversando com Mariana Varella, editora-chefe do Portal Drauzio Varella, ela demonstrava profunda preocupação com o potencial catastrófico que a epidemia pode ter no Brasil entre os mais pobres, entre aqueles que moram em comunidades cujas casas são aglomeradas e sem ventilação. Ela também teme a falta de leitos em localidades onde não há UTI.

Em nosso apartheid sanitário, podemos falar em racismo epidêmico? Creio que sim. A grande maioria dos mais vulneráveis é negra. Como mostra a reportagem do UOL, com dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento em 2018, são quase 35 milhões de pessoas vivendo sem acesso à água tratada e 100 milhões sem esgoto. Somente em São Paulo, são 7 mil pessoas em situação de rua. Soma-se à falta de moradia e à má nutrição, o fato que pessoas em situação de pobreza extrema estão mais vulneráveis a transtornos mentais, o que também baixa a imunidade.

O vírus também escolhe gênero. A ONU Mulheres tem feito diversos alertas sobre como a epidemia afeta mulheres de diferentes maneiras. Na China, há apelos de ativistas para dar importância ao fato de que a violência doméstica cresceu durante a quarentena, que coloca as pessoas em pressão psicológica extrema. Segundo a Organização Mundial da Saúde, as mulheres representam 70% dos profissionais na linha de frente de combate ao vírus, sendo vulneráveis à infecção e ao estresse.

Precisamos, por causa desse cenário, voltar a debater políticas de proteção social. A Alemanha, por exemplo, já estuda oferecer benefício social para quem não tem direito a folga remunerada. Isso nos leva à antiga discussão levantada por Eduardo Suplicy sobre renda mínima, atualmente encabeçada também pela professora da UFRJ, Tatiana Roque, que tem defendido a importância de se ampliar a proteção social dos trabalhadores informais e por conta própria. Além, é claro, da importância de se defender o SUS e lutar contra projeto de seu sucateamento.

Bernie Sanders tem usado a crise pandêmica para reafirmar a necessidade de um sistema de saúde gratuito e universal. Se há alguma lição que podemos tomar desse processo que beira à catástrofe é a necessidade de radicalizar na contramão do neoliberalismo, discutindo acesso aos direitos fundamentais à educação, à saúde e à moradia.

Como bem disse o filósofo Slavoj Zizek, muito tem se falado nos últimos tempos sobre o poder subversivo do vírus. Ou seja, a possibilidade de se pensar formas alternativas de se viver neste mundo. A ironia é que talvez a crise sanitária atual seja a forma limite para perceber que a vida humana neste planeta está se tornando insustentável de maneira crônica e acelerada.

Não é possível postergar a sociedade alternativa que Zizek menciona para o futuro, é preciso praticá-la, no meio da crise, no aqui e agora. O pânico coletivo precisa se transmutar em ação ética e solidariedade comunitária: pagando diaristas pelos dias que não foram trabalhar, ajudando vizinhos idosos a fazer compras, pressionando empresas para proteger seus funcionários. Enfim, para reverter a crise de imaginação coletiva que nos afeta, é fundamental reinventar a solidariedade local e global no nosso cotidiano. No meio da catástrofe, existe a possibilidade de se repensar radicalmente o que queremos como humanidade e projeto político.