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Medo, insegurança e violência são temas que não saem do nosso dia a dia, disseminando a ideia de que necessitamos cada vez mais repressão. Medidas de prevenção ou socioeducativas sequer são sugeridas.

Apesar de o tema a segurança pública ter saído das últimas colocações nas preocupações dos brasileiros em 1989 para ocupar o segundo lugar em 2010 (passou de 15% para 42%), “há muito mais pessoas com medo e preocupadas com a criminalidade do que vitimizadas”. Em pesquisa da USP, “mais de 70% dos entrevistados responderam que vêem mais violência na TV do que no bairro onde mora. No Rio Grande do Sul, o índice registrado foi de 81%”.

Todavia, a violência, o medo e a insegurança tem justificado a declaração de guerra contra o crime, fundada no movimento da lei e da ordem (law and order), e outros discursos como tolerância zero, segregação total, guerra contra as drogas, guerra contra o crime organizado, direito penal de emergência, guerra contra o terrorismo, direito penal preventivo da sociedade de riscos, three strikes and you are out (pena de prisão perpétua, inclusive para quem comete três crimes, ainda que seja contra a propriedade e sem violência), direito penal do inimigo etc.”.

Esta declaração de guerra, segundo o jurista Luiz Flávio Gomes, tem origem em um programa neoliberal político, que se caracteriza pelo “tom acusatório, desqualificativo, denuncista”, desenvolvido “para a manutenção de uma determinada (e injusta) ordem social (comandada, por seu turno, por uma específica ordem e ideologia econômicas), contra determinadas classes sociais, como forma de legitimar a dominação”. Esta política, diz ele, é voltada para os interesses das elites que governam “(camadas privilegiadas, grandes corporações econômicas e financeiras etc.), que lutam pelo modelo de sociedade que assegure seus privilégios em detrimento da maior parte da população excluída”.

Como o Estado “não está em condições de atender às necessidades básicas de grande parcela da população”, nem de satisfazer “as reivindicações populares ou institucionais”, ele adota esta política, propondo novas leis penais, mais policiais, mais prisões etc.

O discurso da repressão torna-se uníssono e uniformizador, explorando “o senso comum, o saber popular, as emoções e as demandas geradas pelo delito assim como pelo medo do delito, buscando o consenso ou o apoio popular para exigir mais rigor penal” (mais repressão, novas leis penais duras, sentenças mais severas, mais presídios, mais policiais, mais vigilância de toda população, mais poder à polícia, mais controle e execução penal sem benefícios), como ‘solução’ para o problema da criminalidade”, visando a “preservar uma determinada ordem social” e também a “castigar o delito (a desviação) como expressão de uma patologia ou problemática individual, fruto da maldade e da ‘livre’ escolha do desviado”.

Vale dizer, a insegurança pública torna-se fundamento para a adoção de mais medidas punitivas”, a serem adotadas “como ‘solução’ para o problema da criminalidade”.

É o próprio discurso que cria as demandas da população, criando ou ampliando a sensação de insegurança e o sentimento de medo, assim como explorando a reação emotiva ao delito.

Esse discurso, que Luiz Flávio Gomes e Débora de Souza de Almeida denominam “populismo penal”, passa para a população  uma “ilusão de solução de um problema extremamente complexo”, alicerçando-se em quatro pilares: a exacerbação de fatos violentos, que passa a impressão de fragilização da segurança, realimentando a demandas por mais segurança; a sacralização da vítima, que enfatiza a dor e o sofrimento da vítima, fazendo com que o pública se identifique com ela; a demonização do criminoso, que joga a população contra o criminoso; e, por derradeiro, a disseminação de ilusão de que a punição é o melhor meio de solução de conflitos.

Dessa forma, abrangendo crimes desprovidos de violência e de maior potencial ofensivo, para reivindicar mais eficiência na perseguição penal, o discurso acaba por sugerir o fim do Estado democrático de direito e dos direitos e garantias constitucionais e internacionais.

Até mesmo o exercício do direito constitucional ao silêncio, cláusula pétrea no nosso sistema constitucional passa a ser combatido como um “mal” que deve ser extirpado do ordenamento jurídico brasileiro.

O populismo penal midiático rejeita o dissenso e não dá espaço “para uma discussão aprofundada e histórica da realidade”, que “continua sempre superficial”, sem a possibilidade de pontos de vista contrários.

O criminoso é o mal e a sociedade é o bem. Não se discute as causas do problema, as raízes injustas da sociedade, as desigualdades geradoras de muitos crimes, as profundezas das injustiças sociais, as misérias da escolarização e socialização dos jovens, a corrupção institucionalizada e protagonizada pelo casamento entre o poder econômico e o poder político etc. (“mostra-se a corrupção, mostra-se o corrupto, mas raramente o corruptor”).

Os modelos explicativos consensuais desdenham a “discrepância de oportunidades na pirâmide social, e concebem o delito como opção racional e maliciosa de um infrator que se confronta injustificadamente com a ordem social legítima. O crime é fruto da maldade e do uso de drogas (não das condições sociais adversas)”.

Fazem parte do populismo penal a “opinião pública, policiais, políticos, legisladores, juízes, agentes penitenciários, universidades ou escolas, ONGs, intérpretes das leis, agências internacionais ou transnacionais etc.”, agentes que “comungam a mesma opinião sobre o uso de técnicas de manipulação das reações emotivas geradas pelo crime, transmitindo a crença de que a solução é a expansão do sistema penal bem como das lei penais duras”. São os que “depositam fé na repressão como solução para o problema da criminalidade”.

Chegamos à “era do fundamentalismo penal, em que não reina o direito e a paz”, mas “a guerra e o Estado de exceção”, onde “o poder punitivo foi transformado em uma espécie de religião fanática”. Já não basta “apenas o castigo devido (que é o correto, quando se trata de um verdadeiros criminoso)”, sendo necessários “castigos mais duros, ‘mão-dura’ contra o crime, fim da impunidade, corte de direitos e garantias fundamentais etc.”.

O uso das leis penais cria na população “tanto a sensação (irreal) de segurança como um sentimento de confiança no sistema penal (nas leis e nas instituições encarregadas de aplicá-las)”.

No populismo penal, “a vítima é a única que é levada em consideração”, explorando-se “o capital simbólico adquirido pelas vítimas – a dor”.

Há uma “crença de que assegurar os direitos do réu ou do condenado se traduziria numa ofensa à vítima, à qual se deve solidariedade”. Nos Estados Unidos, “as leis sofrem um minucioso processo de marketing para provocar empatia e justificar as práticas punitivas, recebendo o nome de vítimas, cujo caso teve grande repercussão na mídia”.

Embora seja necessário “cuidar, proteger e amparar as vítimas, dar-lhes atenção, trabalhar para reparar as perdas geradas pelo delito”, esse máximo respeito que lhes devemos “não pode implicar convertê-las no que não são, ou seja, em autoridade na matéria penal. Ao contrário, é difícil imaginar uma norma penal justa quando ela emana diretamente dos reclamos vitimológicos ou populares”.

O apoio popular para um maior rigor penal faz com que haja “uma maior tolerância da população em relação à tortura do suspeito para obtenção de provas” e que “o legislador penal (tanto brasileiro como o de outros países)” já não se envergonhe “em privilegiar ‘as demandas punitivistas da sociedade’, ainda que em detrimento das garantias da segurança, confiança e estabilidade do sistema penal”.

Essa tolerância dá a sensação de que “o cidadão não parece temer as possíveis extralimitações daqueles que exercem as funções repressivas (o poder punitivo), nem se sente tocado diretamente pelos abusos a que possa estar submetido, nem reivindica garantias que conjurem tais riscos”, fazendo com que as garantias convertam-se em “requisitos formais ou burocráticos prescindíveis”.

É neste contexto que se aceita “a paulatina generalização da vigilância de espaços e vias públicas por meio de câmeras, vídeos e outros instrumentos de controle visual e auditivo, a simplificação dos procedimentos de adoção de medidas penais cautelares e até mesmo civis, a facilitação da prisão preventiva assim como a diminuição do controle judicial nos procedimentos penais, mediante os denominados julgamentos rápidos” (p. 143).

O problema, porém, “não reside na questão de ser ou não benevolente com o crime (ninguém razoavelmente poderia sê-lo), mas de saber como contê-lo dentro de limites socialmente toleráveis, de modo sério e verdadeiramente eficiente”. É necessário “evitar perigosos excessos na persecução dos delitos e execução das penas, em prejuízo dos direitos e liberdades individuais”, resgatando “o tradicional modelo garantista de intervenção penal”.

Ainda que todo delinquente deva ser castigado, a pena de prisão deve ser evitada o máximo possível, reservando-a para “os irracionais perversos e psicopatas que matam ou que podem voltar a matar pessoas”. Fora disso, “o dinheiro que é gasto com prisões deveria ser encaminhado para internamentos compulsórios em escolas públicas de tempo integral (com recolhimento noturno). Escolarização, socialização, profissionalização ou reeducação cidadã (que vale para ricos e pobres): é disso que o País necessita (não de mais prisões)”.
Menos violência e mais dignidade são alcançado “por meio da descriminalização e da despenalização”. Temos que imaginar um País “onde funcione menos o poder punitivo e mais o poder da instrução e da educação”.

Como diz Luiz Flávio Gomes, esse poder punitivo real cruel “vive da corrupção (arrecadação paralela dos agentes públicos), da violência e da impunidade”, que só pode ser combatido por um governo “extremamente democrático, civilizado e materialmente avançado”.

Para isso, necessitamos de “mais democracia, mais igualdade, mais respeito ao outro ser humano, mais educação, vigência e eficácia plena dos direitos humanos, respeito aos direitos e garantias fundamentais etc.”.

* Estudo elaborado com base na obra “Populismo penal midiático: caso mensalão, mídia disruptiva e direito penal crítico”, de GOMES, Luiz Flávio e ALMEIDA, Débora de Souza de. São Paulo: Saraiva, 2013.

Oswaldo Miqueluzzi – Advogado, licenciado em História com pós-graduação em História Contemporânea. Ex-vice-presidente da ABRAT (Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas) – Região Sul. Assessor jurídico da Federação dos Trabalhadores no Comércio no Estado de Santa Catarina.

Autor: Oswaldo Miqueluzzi

Publicado em 15/07/2014 -

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