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O ser humano, afirma o jurista Luiz Flávio Gomes, “sente prazer em ver o inimigo (o devedor, o acusado, o condenado, o marginal preso, o político corrupto) sofrer ou ser humilhado, sobretudo, quando possível, publicamente (midiaticamente)”. É que, acrescenta, quando ao castigo “se agrega o adicional (simbólico) do prazer festivo, deixa de ser tal para se transformar em vingança”.

A mídia não se contenta “nunca com o simples castigo”. É necessário o “aniquilamento (do criminoso, do inimigo), sobretudo midiático, que constitui o moderno pelourinho” e que se alastra para a população. Como “o Estado tomou para si o monopólio da violência, o cidadão ficou privado da prática dessa vingança. Daí as cobranças dirigidas ao Estado, para que o substitua nesse papel (vingativo). A sensação de indignação surge quando há eventual absolvição do inimigo”.

Para Luiz Flávio Gomes, “não há como ignorar que a vingança está mais do que evidente no imaginário popular”. Em pesquisa da USP, realizada em 2010, “para a maioria dos entrevistados, a prisão perpétua é a punição mais adequada para o sequestrador (31,5%); para o terrorista (35,9%); para o marido que mata a mulher (29,7%); para os jovens que matam (23,4%) e para o traficante de drogas (27,6%); enquanto a pena de morte é a mais adequada para o estuprador (39,5%) e a pena de trabalhos forçados é a mais correta para o político corrupto (28,3%)”. Registra-se que, “apesar da gravidade dos crimes mencionados, os tipos de punição eleitos não estão descritos no Código Penal Brasileiro e são expressamente vedados pela Constituição Federal da República”.

O “gradativo afloramento do espírito vingativo e desumano” decorre da observação de “fracasso de um sistema penal que tem a prisão como regra e que mantém mais de meio milhão de pessoas enjauladas sem qualquer perspectiva de reintegração social”, feita por boa parcela dos brasileiros.

Esta parcela da população, “movida por uma sensação de medo e impunidade, acredita que a forma de eliminar de vez o mal é manter para sempre esses indivíduos encarcerados (sem voltar para a sociedade), impondo-lhes penas físicas cruéis ou simplesmente matá-los”.

No campo da criminalidade, diz Luiz Flávio Gomes, todo mundo “tem sempre uma receita (infalível) para a ‘cura’ desse ‘mal’. Prisão, castigo duro, humilhação, degradação do preso, abolição das garantias penais, tortura, extermínio etc. Tudo que possa servir de ‘vingança’ vem à cabeça do cidadão comum (daí a demanda forte por pena de morte, prisão perpétua etc.)”.

O populismo penal “busca no castigo uma fonte de expressar sentimentos de repulsa a uma ofensa, um desagravo ao dano causado pelo delito, uma expressão de emoções, que não passam de vingança”.

Como expiação, costuma-se adotar a cerimônia do “bode expiatório”, a qual, “muitas vezes ganha a espetacularização midiática”, onde “a culpa de todo mundo é canalizada (midiaticamente) sobre os ombros de um ou de alguns culpados. Trata-se de um ritual de purificação dos pecados dos demais (ou da própria mídia)”.

Os defensores do populismo penal “acreditam em virtudes preventivas exageradas e irreais do sistema punitivo” e, ainda, “difundem a ilusão de que uma parte da ‘solução’ do problema da criminalidade e da (in)segurança pública residiria na punição severa de alguns criminosos estereotipados e/ou selecionados (bodes expiatórios), enquanto a outra seria atendida pela contínua elaboração de leis penais mais duras”.

Paira “um clima de intolerância com o delinquente e de irritação com a política criminal”, que é considerada “desastrosa”.

A percepção do crime pela opinião pública “está ligada fundamentalmente àqueles delitos praticados pelas classes populares. As práticas criminosas das elites – como a corrupção, os golpes financeiros, a evasão fiscal – não são percebidos como ameaças evidentes”.

O sistema penal “manda para as cadeias pessoas que nem sempre praticaram crimes, mas que sim, que pertencem a determinados segmentos sociais. O percentual de pessoas que cometem crimes e que são encarceradas é bastante baixo (não chega a 5%). Todas as demais pessoas praticam crimes diariamente e não são sequer processadas ou não vão para a cadeia”.

A chamada “população do bem, qualquer que seja sua classe social”, não responde por seus crimes ou não cumpre “pena nos presídios, porque esses são simbólicos, ou seja, não existem para resolver o problema da criminalidade, sim para criar a sensação de segurança na população crédula, impotente e fiel a qualquer tipo de promessa messiânica populista”.

Como ressalta Luiz Flávio Gomes, a grande criminalidade não faz parte das preocupações dos Ministérios Públicos Estaduais, que, “servos do inquérito policial, não conseguem superar a seletividade classista e discriminatória da polícia civil e militar desfavorável aos crimes dos miseráveis”.

O próprio sistema “é politicamente seletivo (reprime alguns, tolera os demais) e isso faz parte de uma ‘política’ (de Estado) e não de um suposto fracasso do sistema penal”, sendo a seleção de criminosos “uma das características inerentes do sistema penal. O sistema penal não se destina a punir todas as pessoas que cometem crimes e nem poderia fazê-lo, sob pena de processar e punir, por várias vezes, toda a população’”.

O fundamentalismo penal está “voltado para a repressão dura (política de ‘mão dura’), de alguns criminosos (os considerados desiguais ou inimigos), culminando essa política emocional, moralista, irracional, seletiva e enviesada com o castigo (no mínimo informal: castigo midiático) não só dos criminosos violentos (perversos ou psicopatas), senão, sobretudo, dos clássicos segmentos suspeitosos estereotipados (criminalidade dos jovens marginalizados e excepcionalmente dos poderes organizados privados). Como se vê, o populismo penal conservador clássico tem como objetivo alcançar (e estigmatizar) os (considerados) inimigos desiguais”.

O aparelhamento estatal e a mídia criam “um verdadeiro ‘clima’ de guerra, no qual o delinquente pertence a uma classe social escassamente privilegiada, é encarado como adversário a ser eliminado através de respostas penais draconianas, discurso penal assinalado pela demagogia, a criação de tipos penais sem qualquer critério científico e para atender às necessidades circunstanciais – ou, muito pior, para obter, da população, condutas ou omissões de condutas – entre outras’”.

De acordo com Luiz Flávio Gomes, “mais leis, mais penas, mais policiais, mais juízes, mais prisões, significa mais presos, porém não necessariamente menos delitos”.

O fundamentalismo penal levou “não só à militarização das grandes cidades, senão também à estigmatização de grupos de pessoas ou de pessoas estereotipadas, favorecendo o nascimento de organizações criminosas ou mesmo de esquadrões da morte, formados por agentes do poder (militares ou paramilitares), que são os responsáveis por uma extensa violência institucional que atinge, sobretudo, os jovens (sete em cada dez mortos na América Latina)”.

Nas últimas décadas, ressalta Luiz Flávio Gomes, “nosso sistema de prevenção e reação ao delito não só não reduziu a violência nem melhorou a sensação de segurança da população como vem sendo regido pelo populismo penal que, na prática, vem legitimando o poder punitivo (real) marcado pela crueldade, pela ilegalidade, pela violência e pela corrupção (arrecadação paralela dos agentes públicos), execuções sumárias, mortes nos presídios, mortes em série e por policiais, vitimização massiva das classes sócias menos favorecidas, punição seletiva e humilhante de alguns casos selecionados de corrupção etc.”.

Leis, como a dos Crimes Hediondos (Lei n. 8.072/90), que foi “uma das mais duras leis penais do nosso País”, além de contribuir para o encarceramento massivo, tem pouco efeito prático em termos de prevenção do crime.

Com efeito, depois de décadas fundamentalismo penal “(leis mais duras, penas mais severas, endurecimento da execução penal, novos crimes, mais prisões, mais presídios, mais policiais, expansão do poder punitivo e do controle sobre a população etc.), o resultado é mais que desastroso: esse fundamentalismo está conduzindo ao extermínio brutal de grande parcela da população brasileira, especialmente a jovem”.

Enfim, o fundamentalismo penal “é uma falsa solução para um problema real. A mídia, o legislador, os políticos, os juízes… todos temos que nos conscientizar da falsidade da política criminal populista. O castigo para o criminoso é necessário (de acordo com a proporcionalidade do dano causado), mas não se pode a partir dessa premissa levantar bandeiras irracionais e ilusórias”.

* Estudo elaborado com base na obra “Populismo penal midiático: caso mensalão, mídia disruptiva e direito penal crítico”, de GOMES, Luiz Flávio e ALMEIDA, Débora de Souza de. São Paulo: Saraiva, 2013.

Oswaldo Miqueluzzi – Advogado, licenciado em História com pós-graduação em História Contemporânea. Ex-vice-presidente da ABRAT (Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas) – Região Sul. Assessor jurídico da Federação dos Trabalhadores no Comércio no Estado de Santa Catarina.

Autor: Oswaldo Miqueluzzi

Publicado em 18/07/2014 -

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