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Uma criança brincando na rua, um cão dormindo na calçada. O que para a maioria de nós seria a cena mais banal do mundo, para os homens e mulheres da Cidade de Deus é um cenário de sonho. Um sonho de nome pequeno, mas com um significado sem tamanho. Esse sonho se chama Paz.

Em tempo de guerra, aquela criança não brincaria na rua. Só sairia de casa para ir à escola, talvez até a mãe a tirasse da escola, para não correr risco, mesmo correndo o risco de ver os filhos crescerem sem estudo – mas pelo menos eles cresceriam.

Em tempo de guerra, aquele cão não dormiria na calçada, pelo menos não dormiria assim tão esquecido do mundo, tão desatento, entregue aos sonhos caninos; não, aquele cão vagaria assustado e insone, o rabo entre as pernas, os ouvidos feridos pelo barulho ensurdecedor do foguetório que não era foguetório, era tiroteio.

Mas a guerra acabou. Hoje é dia de festa, e neste dia de festa o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, comemora o aumento da frequência escolar em 30% na comunidade, e a candidata para o Brasil seguir mudando, Dilma Roussef, diz que as duas coisas mais importantes para um ser humano são “a Paz e a Dignidade”.

Dilma e Cabral visitam a Cidade de Deus e veem de perto o sonho que começou a virar realidade em fevereiro de 2009, quando a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) chegou à Cidade de Deus. E no rastro da UPP vieram os investimentos do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), o Centro de Referência da Juventude, o Centro Vocacional Tecnológico, a Unidade de Pronto Atendimento (UPA)… Vieram a paz e a dignidade.

Mas se hoje fosse tempo de guerra e fosse noite de Natal ou de Ano Novo em vez do dia da visita de Dilma à Cidade de Deus, a mulher da loja de material de construção – em frente à criança que brinca e ao cão que dorme – não teria coragem de abrir a porta, atravessar a rua estreita e abraçar a vizinha, porque talvez no meio da distância curta houvesse a bala de uma arma de longo alcance, uma bala perdida com endereço certo.

Se ainda fosse a guerra, aquela criança que brinca cresceria entre fuzis e metralhadoras e no meio do seu futuro haveria uma bala ou uma pedra de crack. Mas é tempo de paz, e o viralata Bebezão dorme o sono dos anjos peludos, Thais brinca de casinha e Ana não para de vender material de construção, porque é muita gente construindo ou reformando casas que até bem pouco tempo estavam à venda quase a preço de banana porque todo mundo queria ir embora, e essas mesmas casas agora ganham mais um andar que será alugado para gente de fora, porque agora muita gente de fora quer morar na Cidade de Deus, desde que a paz chegou.

“E é material bom, é tinta boa, é pia de inox, é azulejo, é até porcelanato, porque pobre gosta e agora pode ter casa bonita”, avisa Ana Cristina Gomes da Silva, mãe biológica de Thais e adotiva de Bebezão, confirmando o que outro dia mesmo disse o presidente Lula, “o único que melhorou a vida dos pobres”, numa solenidade de entrega de moradia populares lá na Bahia.

E outro dia mesmo, não faz nem dois anos, nesta mesma loja, os bandidos entravam, botavam fuzis e metralhadoras em cima do balcão, compravam óleo e saíam para lubrificar as armas na mesma calçada onde agora brinca Thais e dorme Bebezão. E outro dia mesmo, a qualquer hora do dia, Ana e a cunhada Ivane tinham que se jogar no chão enquanto homens e mulheres apavorados invadiam a loja aos empurrões, fugindo dos tiroteios.

Mas é tempo de paz, é uma nova comunidade e é um novo país, então Adriana da Silva Rodrigues, que já foi faxineira, arrumadeira, copeira e manicure, resolveu virar empreendedora e abriu uma barraquinha de biscoitos. E isso é só o começo: ela quer mesmo é abrir uma loja. “Tem que pensar grande, porque os grandes começaram pequenos”, diz Adriana, e ri um sorriso que já foi pequeno e hoje é grande e há de ser maior ainda.

É tempo de paz, então os pais e as mães podem dormir à noite, porque não vivem mais o pesadelo da noite em que os filhos nunca mais voltariam para casa. É a paz de Adriana, que tem duas filhas. É a mesma paz de Solange de Oliveira, que tem três filhos, e de Leonardo Bento Secundino, que é filho de Solange e já tem duas filhas, uma de dois anos, nascida na guerra, e outra de um ano, que veio ao mundo quando já havia paz no mundo.

“Eu hoje posso sair para passear com minhas filhas, a qualquer hora do dia ou da noite, e sei que vamos voltar os três para casa”, conta Leonardo, que tem 22 anos, trabalha como operador de carrinho elétrico, não bebe, não fuma, e viu boa parte da sua geração perdida ou morta pelo tráfico e pela polícia.

Mas é tempo de paz, e é também tempo de oportunidades. Então, dona Iracema vê a filha mais velha, Valquíria, aprendendo a ser cabeleireira, ela que desde mocinha cortava e penteava os cabelos da família e das amigas; e a neta mais velha, Catherine, tendo aulas de maquiagem, ela que aos dois anos de idade já se lambuzava de batom e de esmalte; e a filha mais nova, Camilla, fazendo balé, ela que sempre gostou de dançar, e gostava mais ainda de com uma tesoura e um lençol fazer um vestido e por isso sonha em ser estilista; e os netos Cléber e Vítor Hugo aprendendo taekwondo. Todos no Centro de Referência da Juventude que chegou junto com a UPP.

“O papel da mãe, em casa, é estimular a vocação dos filhos, ensinar o caminho, mostrar o certo e o errado. Mas o governo também tem que fazer a parte dele, como está fazendo agora, que é dar as oportunidades”, ensina dona Iracema.

É simples assim. E tem sido assim. E há de seguir sendo assim.

Publicado em 9/08/2010 -

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